Tempos líquidos e nossa saúde mental.

Porque todo dia é dia de cuidar da saúde mental!

Neste artigo, trago uma reflexão a respeito de como fica nossa saúde mental na atualidade, sobre como somos impactados e influenciados pelos valores pós-modernos, e sobre como podemos lidar com tudo isso. Que sejam proposições e provocações (e não, recomendações!).


No presente artigo, tenho como objetivos: desenvolver dois conceitos: o de saúde mental e o de modernidade líquida; estabelecer as relações entre estes conceitos (Como fica nossa saúde mental na atualidade? Quais os efeitos para a nossa saúde mental dos valores pós-modernos?), e propor uma reflexão sobre como lidar com tudo isso.

Parafraseando Arnaldo Antunes, “a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte (…) a gente quer inteiro e não pela metade”, buscamos mais do que atender as nossas necessidades básicas. Trago este trecho desta música para pensarmos a saúde mental.

Saúde mental é um estado de bem-estar em que a pessoa tem a percepção de seu potencial, consegue lidar com o estresse do dia a dia, trabalhar de forma produtiva e contribuir para a sua comunidade. Em outras palavras, é estar bem consigo mesmo e com as outras pessoas, conseguir se adaptar às mudanças e desafios exigidos em nosso cotidiano e conseguir lidar com os próprios sentimentos e emoções.

Cada momento histórico, com suas características, é responsável pela produção de um determinado tipo de subjetividade. (E também pela produção de saúde, de cuidados em saúde, bem como de adoecimentos. Muitos adoecimentos que vemos e vivemos na atualidade são consequência deste momento histórico.)

Michel Foucault, filósofo francês, em 1961, em sua tese de doutorado “História da Loucura” versa sobre as mudanças de compreensão sobre a loucura ao longo da história, e que dependeram não apenas da ciência, mas também das relações entre saberes e poderes, das crenças, dos costumes, dos rituais e do regime político de cada época. Na Antiguidade, a loucura era vista como possessão demoníaca, tendo relação com o divino ou com forças sobrenaturais; o louco podia circular livremente. Na Idade Moderna, sob a principal influência de Descartes e a cisão entre razão e desrazão, a loucura passa a ser compreendida como desrazão, como erro, e precisa ser internada. Nos séculos XVII e XVIII, os loucos passam a ser segregados, excluídos, confinados juntamente com toda a sorte de indesejáveis (inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos, libertinos). Nos séculos XVIII e XIX, a loucura passa a ser objeto do saber médico, necessitando de tratamento; são criados os asilos psiquiátricos, reservados exclusivamente aos doentes mentais.

No séc. XX, Franco Basaglia, em Trieste, na Itália, promoveu várias transformações dentro do hospital psiquiátrico, devolvendo a dignidade aos pacientes. Iniciava-se um movimento de Reforma Psiquiátrica pelo mundo. Basaglia influenciou o movimento da Luta Antimanicomial no Brasil, em defesa dos direitos humanos e em prol do resgate da cidadania das pessoas em sofrimento psíquico. Este movimento tinha por objetivo denunciar as violências ocorridas nos manicômios, propor a construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias.

Após 12 anos da apresentação do projeto de lei Paulo Delgado, foi aprovada a lei 10.216 / 2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Esta lei preconiza: acabar com as internações de longa permanência; propõe que as internações sejam breves e, preferencialmente, em hospital geral; a existência de serviços substitutivos; a desinstitucionalização de pacientes de longa permanência.

Dentre as datas que fazem referência à saúde mental estão:

– a campanha Janeiro Branco, de conscientização sobre cuidados em saúde mental, criada pelo psicólogo Leonardo Abrahão, em Uberlândia (MG), há 11 anos, que, hoje em dia ocorre em vários países. No Brasil, tornou-se lei federal em 2023;

– o dia 18 de maio, dia da Luta Antimanicomial (data instituída em 1987);
– o Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio;
– o dia 10 de outubro, Dia Mundial da Saúde Mental (data instituída em 1992).

É inegável o quanto a saúde mental tem ganhado espaço, atualmente, o que atribuo aos seguintes fatores: às campanhas relacionadas ao tema, ao adoecimento psíquico na pandemia; ao aumento das taxas de depressão e ansiedade, no período pós-pandemia; ao cenário esportivo. Cabe destacar, aqui, a necessidade de se tratar deste tema também sob o aspecto preventivo.

Vou me ater agora ao momento histórico em que vivemos, a pós-modernidade, que corresponde ao período após a Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. Na pós-modernidade, vigoram o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o caótico; os processos relacionais acelerados; a ruptura de valores institucionais, a busca incessante pelo novo, a alternância entre o racional e o sensível, a evitação do sofrimento, a indisposição em viver as dores da condição humana; estimula-se o consumo a qualquer custo (não para satisfazer uma necessidade), para seguir o que é recomendado, o que é tendência, para pertencer a um grupo e ser reconhecido, para se ter status. Tempo de relativismo, tempo de ambivalências, de reticências, de pensar livremente.

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, em 2001, lançou um livro chamado “Modernidade líquida”. Para Bauman, vivemos hoje a continuidade da modernidade, mas com algumas características diferentes (de uma modernidade sólida, com valores, instituições, identidades rígidas, sólidas, para uma modernidade líquida, em que tudo é fluido, incerto e transitório).

A modernidade líquida descreve uma era de transitoriedade e fluidez nas relações sociais, identidades e instituições. Caracteriza-se pela erosão de laços comunitários estáveis, predominância do individualismo e de um mercado de trabalho flexível, marcado pela precariedade. As relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Evidenciam-se a fluidez e a instabilidade contínuas. As certezas e as fundações seguras de outrora desmoronam. “Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar.” “Escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”. “Ainda estamos em uma sociedade líquida, mas em que nascem sonhos de uma sociedade menos líquida.” (frases do próprio Bauman sobre este conceito).

Na era das mídias sociais, constata-se a presença imperiosa do que se pode chamar de “economia da recomendação”, influenciando tendências, padrões de comportamento, desejos e atitudes de consumo. Desta forma, o sofrimento parece ser proporcional às pressões mercadológicas, que ditam propensões/tendências de consumo e altas exigências; quanto maiores as expectativas, maior o sofrimento diante da não satisfação das mesmas.

Assim, em virtude das constantes mudanças e da imprevisibilidade, intensificam-se a insegurança, a ansiedade e o estresse. Na cultura do descartável, da gratificação imediata, os vínculos também são frágeis; como se o valor de uma pessoa fosse definido pelo número de curtidas; as pessoas se conectam e se desconectam; evidencia-se a superficialidade das relações, o não aprofundamento. Na lógica do consumismo, para seguir uma tendência ou fazer parte de um grupo, buscam-se ideais ou a satisfação de desejos que não são próprios; desta forma, impera o sentimento de ausência de sentido e o vazio existencial.

Diante disso, como cuidar da saúde mental?

Há um tempo, o Ministério da Saúde lançou uma campanha com o slogan “Pratique hábitos saudáveis. Melhore sua qualidade de vida. Seu corpo e sua mente agradecem”, e com a imagem de um continuum que relaciona vários aspectos que temos de ter em conta ao se pensar o cuidado em saúde mental. Nesta imagem, são levantados os seguintes pontos: “não tenha vergonha de buscar ajuda de profissionais”; “não abra mão de boas noites de sono”; “reforce seus laços de amizade”; “reserve um tempo para curtir a vida e a convivência com os outros”; “viva intensamente seus momentos em família”; “pratique atividades físicas”; “mantenha uma alimentação saudável”; “e lembre-se: você não é um super-herói. Reconheça seus limites e viva a vida intensamente!”.

Considerando o exposto acima, destaco alguns pontos fundamentais para o cuidado em saúde mental: atividade física regular; adoção de padrões de sono saudáveis; alimentação saudável; equilíbrio hormonal e vitamínico; sol; desenvolvimento de enfrentamento, resolução de problemas e habilidades interpessoais; aprender a administrar emoções; ambientes de apoio na família, na escola e na comunidade (RELAÇÕES); hobbies terapêuticos (estratégias para lidar com o estresse); espiritualidade/religiosidade; admitir a própria vulnerabilidade; buscar ajuda.

Destaco, ainda, outros pontos que considero cruciais: tomar consciência da própria respiração (prestar atenção e observar a própria respiração); e estar atento ao aqui e agora, ao presente (a única coisa que temos é o momento presente, e este é o nosso maior presente; a consciência sobre o próprio corpo nos auxilia neste quesito; estar atento ao próprio corpo nos conecta à nossa existência presente!).

No que diz respeito às habilidades sociais, elas são consideradas fatores de proteção à saúde mental. Dentre as competências socioemocionais, estão: autoconhecimento, autorregulação, empatia, sociabilidade, colaboração, resiliência, respeito à diversidade, liderança, tomadas de decisão e resolução de problemas. Trabalhar/desenvolver competências emocionais e habilidades sociais possibilita a melhora da convivência, o respeito mútuo e o respeito à diversidade, a paz interior e a convivência pacífica. Um exercício importante é dar-me conta de quais são meus estressores, de como reajo aos meus estressores (reação), e de quais são os pensamentos e os sentimentos envolvidos.

Quanto às estratégias de resolução de conflitos, podemos afirmar que desenvolver uma postura assertiva auxilia na expressão dos sentimentos, no desenvolvimento de uma comunicação clara, objetiva e não-violenta, propicia a melhora nas relações sociais, favorecendo a resolução de conflitos.

Além disso, a saúde mental é um tema que atravessa muitos outros e que é também atravessado por tantos outros temas. Tendo em vista a amplitude do conceito, assim como o conceito de saúde abrange inúmeros fatores, o mesmo ocorre com a saúde mental; dentre eles, estão: alimentação, emprego, renda, moradia, saneamento básico, educação, lazer. Pensar em saúde mental exige refletir sobre cuidados individuais, atitudes institucionais e políticas públicas.

Quanto às políticas públicas, quero destacar duas leis federais: a Lei nº 14.721, de 2023, que garante o atendimento psicológico gratuito a gestantes, parturientes e puérperas pelo Sistema Único de Saúde (SUS); estabelece o pré-natal psicológico, pois cuidar da saúde materno-infantil é cuidar da vida em sua origem, o que traz impactos para uma vida inteira. Outra iniciativa super recente é a Lei nº 15.100/2025, sancionada em 13 de janeiro de 2025, que restringe o uso de celulares nas escolas. Estudos mostram que o uso excessivo de telas está atrelado a sintomas depressivos, ansiosos e ao risco de suicídio.  Desta forma, evidencia-se o caráter preventivo destas leis.

O termo “saúde mental” ainda está intimamente atrelado ao dualismo cartesiano mente-corpo. Visando superar esta dicotomia, considerando todos os aspectos abordados acima, podemos afirmar que pensar a saúde mental é pensar a saúde como um todo, de maneira integral.

Para concluir:
Pensar a saúde mental é pensar a saúde integral!

Como buscar solidez em tempos líquidos? Não tenho receita pronta para algo tão desafiante, mas quero pontuar alguns aspectos que considero importantes:

– estreitar/aprofundar laços, relações;
– descansar, dar-se conta da própria fragilidade, pedir ajuda, fazer pausas;

“Requer coragem dizer sim para o descanso em uma sociedade onde a exaustão é vista como símbolo de status”, afirma a professora e pesquisadora Brené Brown. Em tempos de ativismo e exaustão (em que se “equilibram pratos”), descansar é um ato de transgressão.

– prezar pela qualidade e não pela quantidade;
– ênfase no autoconhecimento, para buscar/priorizar o que te faz sentido.

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Angelita Nedel

Psicóloga

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