EXPERIÊNCIAS NA TERAPIA COMUNITÁRIA SISTÊMICA INTEGRATIVA: TEORIA E PRÁTICA

O presente artigo, de autoria própria, corresponde a um capítulo do livro “Terapias Integrativas – Eu no Mundo”, uma publicação franco-brasileira, da Editora Rosafrancesa, lançado em Curitiba, em 14/01/2025.

“O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila, em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam se eu fosse você. A gente ama não é a pessoa que fala bonito, é a pessoa que escuta bonito, a fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não escuta que ele termina.”

(Rubem Alves)

E assim começaram muitos dos encontros do Grupo de Terapia Comunitária, do Bairro Bela Vista, em Palhoça (SC), como forma de estimular a verdadeira escuta e compreensão do outro, sem a necessidade de dar conselhos ou interromper silêncios. E quando vinha um choro, que, por vezes, custava a sair… “Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora, e conta logo tuas mágoas todas para mim… quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora, que não vai embora, que não vai embora…”, permitindo que o choro viesse, fosse expresso, pudesse ser acolhido, sem ser preenchido com palavras.

Quantos por este grupo passaram; alguns foram ajudados e seguiram a vida; outros, por aqui ficaram, criando uma rede de solidariedade, um grupo de ajudadores. Lideranças comunitárias se revelaram; laços se criaram e se fortaleceram; amizades verdadeiras ganharam espaço, daquelas que carregamos pra vida, independentemente de onde cada um se encontra; pessoas se tornaram referências em nossas vidas.

O presente artigo tem por objetivos: contextualizar o momento histórico em que vivemos, as mudanças de paradigma na Saúde, analisar como as práticas comunitárias em saúde mental se inserem neste contexto, de modo especial, a Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa, e descrever o modo de funcionamento dos encontros; por fim, apresento um relato de experiência.

Contextualização do momento histórico

Cada momento histórico, com suas características, é responsável pela produção de um determinado tipo de subjetividade. Na pós-modernidade, vigora o efêmero; afetos e emoções são tidos como descartáveis; evita-se o sofrimento; estimula-se o consumo a qualquer custo, para seguir o que é recomendado, o que é tendência, para pertencer a um grupo e ser reconhecido. O conceito de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), define este momento, em que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Deste modo, diante de exigências tão elevadas e expectativas não satisfeitas, o sofrimento se intensifica.
Ao longo da história da ciência, tanto no que diz respeito à produção de conhecimento quanto às práticas em saúde, vemos a coexistência de dois paradigmas: o paradigma cartesiano, que deu origem ao modelo biomédico, voltado à fragmentação, a subdivisão em partes para conhecer um fenômeno, à análise, à criação de várias disciplinas e especialidades; e outro, voltado à síntese, à integração totalizadora, ao se perceber que, com a redução em partes, perdia-se a integralidade do fenômeno.

Em termos de saúde pública, diante das mudanças nas dimensões epistemológica, técnico-prática e política no que concerne à atenção em saúde, mais particularmente, em saúde mental, ao longo da história, passou-se da lógica hospitalocêntrica, à CAPS-centrada, para, enfim, atribuir, à Atenção Básica (AB), o papel de centro ordenador da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Tendo em vista o conceito ampliado de saúde, o processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a compreensão da Estratégia de Saúde da Família (ESF) enquanto porta de entrada preferencial do sistema de saúde, sendo, esta, a responsável pela resolutividade de 80% dos casos, visando à oferta de uma atenção integral à saúde, evidencia-se a necessidade de ações de promoção, prevenção e acolhimento ao sofrimento psíquico já neste nível de atenção. É nesta realidade em que se inserem as práticas comunitárias em saúde mental.

Apesar de a Reforma Psiquiátrica buscar o rompimento com a lógica asilar e manicomial, propondo outras formas de tratamento, comunitárias e integradas à vida cotidiana de cada pessoa, ainda assim, somos atravessados pela antiga lógica, que deixa marcas invisíveis; “manicômios mentais nos habitam” em nosso desejo de hierarquizar, classificar, rotular, dominar, subjugar, oprimir e controlar a vida.

Adalberto de Paula Barreto (2008, p.35), em sua proposta de Terapia Comunitária, afirma que “o sofrimento humano, decorrente do macrocontexto socioeconômico e social, fere a dignidade da pessoa, atinge seus direitos como cidadão, gerando extremos de patologia social e adoecimento”. Compreendendo o protagonismo deste sujeito frente ao seu contexto, os grupos comunitários propõem, assim, o fortalecimento dos laços sociais, o sentimento de pertença, a criação de uma rede de solidariedade e de ajuda mútua.

Dentre as inúmeras definições de saúde, Bezerra Júnior (2007) afirma: “saúde significa a capacidade de poder suportar embates, sofrimentos, limitações e ir adiante, construindo novas formas de existência”. Em diálogo com Deleuze (1997), alguns autores defendem que “ter saúde é poder desenvolver a vida que há em si, é a vida em sua variação, desenvolver o poder de afetar e ser afetado, isto é, a vontade de potência”, a capacidade de se (re)inventar constantemente. Em termos de promoção de saúde, busca-se, desta forma, “ocupar-se mais com a pessoa e sua dor, e não com a doença”. Assim, os grupos são uma estratégia promotora de autonomia e transformação; produzem novos vínculos, pertenças e sujeitos.

O que é grupo?

Somos feitos na relação, no vínculo. O ser humano, desde o nascimento, não vive sem o outro. E quando estamos em um grupo terapêutico, temos a chance de reparar o que ficou mal resolvido em relações anteriores. No grupo, as transformações são mais potentes; temos testemunhas, temos apoio, temos mais leveza; entramos em corregulação.

O grupo se configura enquanto o espaço privilegiado para a troca de experiências, possibilitando a compreensão do sofrimento e sua superação, estabelecendo-se relações de ajuda mútua entre os participantes. É na esfera intersubjetiva que ocorrem a transformação pessoal e a mudança social.
Os Grupos de Saúde Mental podem ser entendidos enquanto espaços em que, por meio do sentimento de identificação (no sofrimento e nas experiências vividas), das relações de ajuda e do vínculo entre os participantes e com os profissionais, estimulam-se a expressão verbal e emocional/catártica, promovem-se aprendizagens, experiências corretivas e mudanças em termos de organização psíquica; tornam-se possíveis novos relacionamentos interpessoais, bem como a melhora nos relacionamentos já existentes.

Terapia Comunitária e modo de funcionamento

Uma técnica comumente adotada na saúde pública, e respaldada pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), a qual passou a integrar em 2008, diz respeito à Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa, do psiquiatra cearense Adalberto de Paula Barreto, e corresponde a um espaço de promoção de encontros interpessoais e intercomunitários, objetivando a valorização das histórias de vida dos participantes, o resgate da identidade, a restauração da autoestima e da confiança em si, a ampliação da percepção dos problemas e possibilidades de resolução a partir das competências locais. Tem como base de sustentação o estímulo para a construção de vínculos solidários e promoção da vida (BARRETO, 2008, p. 33). Busca resgatar a integralidade, propondo a integração entre os conhecimentos científicos e os saberes e crenças populares.

Na Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa estão estabelecidas cinco etapas; são elas: acolhimento, escolha do tema, contextualização, problematização, encerramento (BARRETO, 2008).
O acolhimento é dirigido pelo coterapeuta; tem por objetivo acolher os participantes, possibilitar o entrosamento entre os mesmos, favorecendo o estabelecimento de um clima harmonioso e amistoso, de maneira descontraída; exerce a função, também, de um aquecimento para o encontro e aprofundamento de questões difíceis que se estabelecerá na sequência; ao final desta etapa, o coterapeuta expõe brevemente as regras do grupo (fazer silêncio; falar da própria experiência; não dar conselhos; não fazer discursos ou sermões; respeitar a história de cada pessoa; sempre que alguém quiser, pode interromper a reunião para sugerir/propor uma música, uma poesia, um ditado, uma oração, uma piada, relacionados à temática em discussão).

A segunda etapa corresponde à escolha do tema, sendo facilitada pelo coordenador do grupo. Cada participante é convidado, caso sinta interesse e necessidade, a expor, de forma resumida, seus problemas e temas para a terapia. Para tanto, o coordenador pode se valer de alguns provérbios para sensibilizar os participantes: “Quando a boca cala,/ Os órgãos falam,/ Quando a boca fala,/ Os órgãos saram.” Ou ainda: “Quem guarda, azeda,/ Quando azeda, estoura,/ E quando estoura, fede.” Por meio de tais ditados populares, chegamos ao seguinte sentido conotativo: o sintoma se forma onde faltou a palavra. O terapeuta anota o nome, o problema de cada pessoa e faz uma síntese, ao final. O grupo escolhe um dos problemas/temas para ser trabalhado naquele encontro. Para que esta escolha seja feita, o coordenador mobiliza o grupo com os seguintes questionamentos: “Qual destes casos você acha que é mais urgente, com qual você mais se identifica e poderia ser escolhido para nossa terapia de hoje? (…) Por que você escolhe este problema?”.
Na terceira etapa, chamada de contextualização, o grupo faz várias perguntas para a pessoa que teve seu problema escolhido, para contextualizar o problema e compreender o sofrimento. Isso possibilita, à pessoa que fala, organizar melhor suas ideias, sentimentos e emoções. O grupo, por sua vez, passa a entender melhor o contexto em que ocorre a situação-problema e a compreender a pessoa que fala.

A quarta etapa diz respeito à problematização. A pessoa que expôs seu problema fica em silêncio. Ao grupo é proposto um mote, de modo a permitir a reflexão dos demais participantes: “Quem já viveu uma situação parecida com a exposta aqui e o que fez para resolvê-la? Ou para conviver melhor com ela?”. O terapeuta estimula que cada um compartilhe experiências vivenciadas que se aproximem do problema exposto no encontro.

No encerramento, quinta etapa da Terapia Comunitária, são tecidos agradecimentos às pessoas que se expuseram e partilharam suas vivências; propõe-se que sejam realizados rituais de agregação (cânticos, correntes, entre outras) que permitem suscitar e reforçar a dimensão coletiva. Busca-se realizar um fechamento do que foi vivenciado naquele encontro; as pessoas podem sugerir músicas, recitar poemas, bem como falar do que aprenderam. Deste modo, percebe-se que, em um encontro de Terapia Comunitária, abre-se um espaço para a compreensão do sofrimento; a organização das ideias, sentimentos e emoções; e o compartilhamento de saberes e experiências. A Terapia Comunitária se revela como uma prática de cuidado em saúde que se propõe a acolher o sofrimento dos sujeitos por meio da constituição de espaços de troca, palavra e vínculo. A partir da escuta atenta, da expressão de conteúdos emocionais, do acolhimento ao sofrimento, as vivências são ressignificadas. A saída do sofrimento e a solução dos problemas das pessoas provêm do coletivo, por meio da identificação com o outro, do respeito ao diferente e do compartilhamento de experiências.

Relato de experiência


O grupo de Terapia Comunitária do bairro Bela Vista, em Palhoça (SC), foi criado em setembro de 2013, a partir de uma reunião de equipe da UBS Bela Vista. Os encontros ocorriam com frequência quinzenal, e eram coordenados por um médico de família e por mim, psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) na época, com o apoio de outros integrantes das equipes (da ESF e do NASF).

No início de seu funcionamento, o número de participantes era pequeno.  Como forma de divulgação do grupo, os ACSs entregavam “mosquitinhos” (pequenos bilhetes informativos), nas casas dos moradores do bairro. Outra estratégia utilizada era a exposição do cronograma bimestral dos encontros, pela UBS e em outros serviços do bairro, bem como a entrega deste cronograma aos usuários, durante as consultas ou após o acolhimento inicial, na recepção da UBS Bela Vista.

No ano de 2013 e anos subsequentes, a equipe do NASF, em Palhoça, ainda se configurava enquanto apoio à várias equipes de ESF, com ações de matriciamento, consultas conjuntas, grupos; as ações individuais diretamente aos pacientes eram em minoria. Desta forma, o acesso dos usuários ao atendimento psicológico individual era dificultado. Assim, o grupo foi se configurando enquanto um espaço de promoção de saúde mental, de apoio emocional, de acesso ao serviço de Psicologia, mas também de criação de vínculos e rede de apoio e solidariedade.

No decorrer do tempo, o grupo foi ganhando visibilidade; pessoas de outros bairros, familiares de integrantes e até mesmo pessoas de outros municípios começaram a participar dos encontros. Um pouco antes da pandemia, aconteciam rodas de mais de 30 pessoas.
Muitos profissionais estiveram à frente do grupo, facilitando a realização dos encontros: médicos, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros, técnicos de Enfermagem, coordenadores da UBS, integrantes do NASF.

Ao longo de 10 anos de vigência, os encontros do grupo ocorreram em diferentes espaços: salas do Centro de Convivência, do CRAS, consultórios/sala da Fisioterapia, na UBS Bela Vista, NEPS (Núcleo de Educação Permanente em Saúde), bem como de forma itinerante, nas casas dos participantes, visando sair dos “muros” da instituição, estimular a autonomia do grupo, de modo que as lideranças comunitárias conduzissem os encontros, e assim, promovendo a realização dos encontros independente da participação de profissionais.

A profundidade dos vínculos que se criavam se estendia além da realização dos encontros; era levada para a vida. Gostaria de exemplificar com duas situações: uma das senhoras, uma das pioneiras na participação do grupo, sem familiares na região, quando realizou uma cirurgia, foi cuidada e auxiliada, no pós-operatório, por amigos do grupo, que se tornaram sua rede de apoio. Outra situação: uma outra integrante, diante de alguns conflitos familiares, passou a não ter onde morar; nesta ocasião, foi acolhida na casa de uma das participantes por alguns meses.

Em 2020, com a pandemia, o grupo precisou se reinventar. Realizamos algumas ações de entregas de materiais, a domicílio, para a confecção de artesanatos manuais; realização de videochamadas, com alguns integrantes; realização de encontros virtuais por meio de grupo no WhatsApp, através de mensagens de texto; por fim, passamos a realizar encontros virtuais no MEET. Foi um momento desafiador; mas conseguimos nos fazer presentes e nos apoiar, em tempos de isolamento social.
Quero ressaltar, aqui, que este grupo perdurou por uma década. Não era um grupo de um profissional ou de uma área do saber, apenas. Vários profissionais de saúde se apropriaram deste grupo, conduzindo-o e coordenando-o. E, mesmo na ausência de profissionais, o grupo permaneceu, sendo liderado por uma das participantes, e acontecendo de forma itinerante, na casa de diversos integrantes.

Percebe-se, assim, que o grupo referido neste trabalho parece ter contribuído para a saúde mental dos participantes, pois evidenciou-se melhora na organização psíquica, ampliação dos saberes, autoconhecimento, melhora da autoestima, ressignificação de experiências, desenvolvimento de habilidades sociais, melhora de sintomas, mudança de visão sobre si mesmo, sobre o mundo e os outros, adoção de uma atitude de abertura ao outro e criação de novos laços de amizade. Na medida em que os usuários se responsabilizam por si mesmos, sendo agentes ativos do autocuidado, a medicação deixa de estar investida como o fundamental elemento de melhora. Os usuários passam a adotar, assim, práticas integrativas e complementares em saúde, possibilitando uma compreensão outra da vida, do adoecimento, das dores do corpo e da alma, estabelecendo-se novas relações interpessoais. Além disso, o grupo cumpriu, ainda, a função de educação permanente aos profissionais da saúde, que atuavam como facilitadores dos encontros, tendo em vista o aspecto pedagógico do apoio matricial possibilitado durante os grupos, entre os profissionais.

Ressalta-se, portanto, que a Terapia Comunitária busca superar os valores pós-modernos, por meio da valorização da solidariedade e ajuda mútua, dos vínculos comunitários, resgatando a integralidade da pessoa, propondo a integração entre o conhecimento científico e os saberes e crenças populares, possibilitando, assim, novas formas de cuidado em saúde mental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barreto, A. de P. (2008). Terapia comunitária: passo a passo. 3ª ed. revista e ampliada. Fortaleza: Gráfica LCR.
Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Brasil: Zahar.

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Angelita Nedel

Psicóloga

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